Resenha GLB


O Grande Livro Branco, por Rodrigo Fonseca (crítico de cinema e dramaturgo)

Há vagas para o existencialismo nos quadrinhos desde que Winsor McCay (1869-1934) puxou os lençóis de Little Nemo pela primeira vez, em 1905. Só que o dorminhoco Nemo, cujo inconsciente dá formas circenses a seus sonhos de picadeiro, não teria malícia suficiente para compreender o que há de existencial nos arranjos de tintas e letras desta iguaria chamada “O Grande Livro Branco”. Para entender a ciranda do desassombro desfiada na embolada a dois por Hannah 23 e Hélio Lopes, nosso maroto Nemo precisaria de anos e anos de U2 e Tom Waits nos tímpanos, dos musicais de Alan Parker nas retinas, de pitadas de Clarice Lispector em desjejuns literários apressados e muitos gibis de Alan Moore. Temperadas com aceto balsâmico, alho-poró, Sartre e Bono Vox, as referências de H&H formam uma salada de folhas crespas capazes de traduzir com a prosódia do pop angústias e anseios de quem recusa o fixismo, o marasmo e a preguiça. “O Grande Livro Branco” é verbo de ação. Na primeira do plural. Inclua-se nela.

A inclusão não é voluntária: é lei. Uma vez despetalada, esta rosa disfarçada de gibi bate na veia, instaura-se no peito e cresce na alma. Não como joio, nem como erva daninha. Ela cresce pela doçura e generosidade com que os autores transformam desabafo em linguagem. Jacques de Loustal, quadrinista de mão cheia, já havia ensaiado uma transmutação similar em seus primeiros álbuns lançados no mercado da França. Mas Hannah 23 e Hélio escancaram a fresta aberta pelo bruxo francês. Experiência radical para um país que produziu Midas das HQs como Lourenço Mutarelli e Lor, “O Grande Livro Branco” é uma desmistificação da arquitetura confessional da literatura de auto-ajuda, convertendo segredos, intimidades e sussurros de desejos obscuros em um atlas da rotina. Um atlas onde cada estação de ponteiro de relógio guarda mistérios da Eternidade de um dia. Alguns chamariam isso de poesia. Mas só a maturidade do “GLB” nas prateleiras das gibitecas e acervos bibliográficos vai deixar evidente sua potencialidade poética.

No mais, o máximo que você precisa saber dele antes de virar as primeiras páginas é que as subjetividades de Hannah 23 e Hélio se uniram na forma de uma mulher. Morena, ruiva, loura, mulata, índia, asiática, cafuza e mameluca _ a tonalidade da pele e dos cabelos fica à escolha do leitor _, a protagonista, sem nome, tem um quê das muitas mulheres (ou dos muitos homens) que você já conheceu. Chamemo-la de Ela, só para gerar familiaridade. Ao longo de 130 páginas , Ela trabalha, estuda, anda, dorme, ama, aposta, perde, ganha, acha que ganha, quebra a carinha bonita, faz plástica e coleciona ursinhos de pelúcia à cata de uma felicidade que possa chamar de sua. Seu dia-a-dia alterna erros, acertos, soluços – feito o dia-a-dia meu e seu. Não se assombre. Até o capítulo final, Ela, feminina ou masculina, será um pouco de você.

É a cortesia de dois amigos de bancos de escola que se reuniram para flagrar a porção fábula de cada dia vivido. Para ressaltar a face inusitada do lugar-comum, Hannah 23 e Hélio mesclaram estilos de roteiro, pintura, desenho, colagem e fotografia que marcaram as histórias em quadrinhos ao longo do século XX, incorporando postulados da arte moderna ao livre grafismo e à dramaturgia. “O Grande Livro Branco” é uma galeria de pesquisas plásticas onde o ensaio interessava mais do que o resultado. No entanto, a alquimia entre o paisagismo junguiano suicida de Hannah 23 e o racionalismo quixotesco de Hélio gerou um resultado saboroso de provar, devorar e repetir. Basta observar cada amanhecer para entender de onde vem o “GLB”.

Certa vez, Italo Calvino (1923-1985), convidado para escrever sobre Fellini, confessou: “O filme do qual tínhamos a ilusão de sermos apenas espectadores é a história de nossas vidas”. O “GLB” nada mais é do que uma versão reloaded da celebração felliniana, da graça fantasiada de pranto, feito um pierrô arrependido, do começar-de-novo. E La nave va.

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